Verbete

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Autoras do verbete: Rosani Moreira Leitão e Erica Jussara Uturago

 

Identificação e Autodenominação

O povo Avá-Canoeiro é falante da língua Avá-Canoeiro, da família linguística tupi-guarani, do tronco Tupi. Autodenominam-se “Ãwa”, que significa “gente, pessoa, ser humano, homem adulto”.

Até 1960, esse povo era conhecido apenas como “Canoeiro”, devido à utilização das canoas e à habilidade com a canoagem. Posteriormente, foi adicionada ao termo de identificação “Canoeiro” a palavra “Avá”, como sendo o etnônimo do grupo, vocábulo que, segundo Toral, foi registrado por Couto de Magalhães um século antes (TORAL, 1984/1985, p. 289).

Também já foram chamados de “caras pretas”, quando um dos grupos resistia ao contato e peregrinava pela região do médio Araguaia, sendo cruelmente perseguido por “caçadores de índios” e fazendeiros que pretendiam usar aquelas terras para a agricultura e a pecuária. Talvez o termo “cara preta” tenha sido utilizado devido às pinturas específicas feitas com tinta de jenipapo que utilizavam no rosto (PEDROSO, 2006, p. 91; RODRIGUES, 2015).

Foi somente entre o final da década de 1960 e o início da de 1970 que se consolidou o termo “Avá-Canoeiro”, que ainda hoje é o mais conhecido e utilizado na literatura.


Localização

Os Avá-Canoeiro atuais se dividem em dois grupos. Um deles reside atualmente na Ilha do Bananal, na aldeia Canoanã, junto ao povo Iny Javaé. Os integrantes desse grupo se deslocaram para essa região fugindo da perseguição dos colonizadores, ainda no início do século XIX. Resistiram ao contato direto e viveram por décadas em peregrinação na região, até o início da década de 1970, quando foram capturados e levados contra a sua vontade, por sertanistas e indigenistas, agentes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para a aldeia Canoanã, onde passaram a viver como minoria cultural e linguística, em condição de subordinação.

Hoje, principalmente uma geração jovem, inspirada pelo sonho do avô — o líder Tutawa, já falecido — e articulada ao movimento indígena, conta com o apoio de pessoas e entidades aliadas e luta pela retomada de seu território tradicional, que consideram necessário para sua sobrevivência física, dignidade humana e revitalização e fortalecimento cultural.

O outro grupo vive no município de Minaçu, no norte de Goiás. A literatura disponível registra a existência de aldeias Avá-Canoeiro no antigo norte de Goiás até a década de 1960, antes da divisão dos estados de Goiás e Tocantins, ocorrida em 1988. As fontes documentais e bibliográficas, assim como o imaginário regional, também fazem referência a vários ataques a essas aldeias, por parte de fazendeiros locais e em decorrência da expansão da agricultura e da pecuária na região. Após vivenciarem perseguições e sucessivos massacres, os sobreviventes passaram a fugir, esconder-se em cavernas e perambular por lugares de difícil acesso até o início da década de 1980, quando sua região de refúgio foi atingida pela construção da represa da Usina de Serra da Mesa. Nessa mesma região, foram posteriormente instalados por agentes indigenistas da FUNAI, conforme veremos mais adiante.

 

Demografia

Segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2022, no estado de Goiás, os Avá-Canoeiro constituem três grupos, com principal localização no município de Minaçu, na Aldeia Jatobá, onde vivem apenas nove habitantes. Contudo, as informações demográficas sobre esse povo não são precisas.

Segundo uma das autoras deste texto, a antropóloga Rosani Moreira Leitão, que há anos colabora com eles e com a Secretaria de Educação do Estado de Goiás (SEDUC-GO) nos processos de construção de sua escola e de uma proposta pedagógica intercultural, são apenas oito pessoas, sendo duas delas sobreviventes do último massacre sofrido: a anciã Matxa e sua filha Tuia. Os demais pertencem a gerações nascidas após o contato e que viveram a maior parte de suas vidas sob a tutela da FUNAI: Trumak e Niwathima, filhos de Tuia, e quatro crianças, filhas de Niwathima com Parazin Tapirapé. Já extremamente reduzidos, sofreram perdas de pessoas que desempenhavam papéis importantes no grupo familiar: a anciã Nakwatxa, irmã de Matxa, e Iawi, o pai de Trumak e Niwathima, esposo de Tuia — ambos também sobreviventes do último massacre sofrido pelo grupo.

Assim, percebe-se que se trata de um povo em estado de extrema vulnerabilidade, seja pelo número reduzido de integrantes, seja pelas fragilidades relacionadas à saúde ou pelas perdas linguísticas que vivenciam (BORGES; LEITÃO, 2020).

As fontes oficiais acerca da população dos Avá-Canoeiro do Araguaia também não são precisas. Muitas vezes estão desatualizadas quanto a nascimentos e óbitos e, em outras ocasiões, somam os integrantes dos dois grupos ou fazem confusões entre eles. Segundo o site Brasil de Fato (2016), chegavam a ser 33 indígenas naquele ano, sendo a maioria filhos de casamentos interétnicos. De acordo com conversas informais das autoras com integrantes desse grupo e com informações reunidas a partir de documentos disponíveis online, são aproximadamente 30 pessoas, em sua maioria pertencentes a uma geração pós-contato e filhas de casamentos com pessoas Javaé, Karajá e Tuxaua. São filhos e netos de Kakamy, filha de Tutawa e a única sobrevivente, entre os 14 perseguidos, dos massacres sofridos.

 

Situação das Terras Indígenas Avá-Canoeiro

A Terra Indígena dos Avá-Canoeiro de Minaçu, no norte de Goiás, foi identificada e demarcada durante as negociações entre FURNAS e FUNAI como parte das ações compensatórias pelos impactos causados pela hidrelétrica, sendo homologada apenas em 2023. Nela se localizam a aldeia Jatobá e a Escola Estadual Indígena Avá-Canoeiro. Já a Terra Indígena Avá-Canoeiro do Araguaia, denominada TaegoÃwa em homenagem à esposa de Tutawa, localiza-se na Ilha do Bananal, à margem direita do rio Javaés, com cerca de 29.39...

Território Ãwa
Território e Mapas

 

 

Modos de Organização e Lideranças

Devido às condições históricas a que foram submetidos, os dois grupos Avá-Canoeiro — marcados pelas guerras conduzidas por agentes coloniais, pelas políticas de aculturação dos governos da República do Brasil e pelas perseguições e massacres empreendidos pela população regional e por fazendeiros locais — sofreram graves perdas culturais. Em consequência dos ataques, da destruição das aldeias e da quase extinção física de seus habitantes, bem como dos casamentos interétnicos e das condições atuais a que estão expostos, perderam também as condições de reprodução de seus modos de vida, de sua organização social e de suas práticas culturais tradicionais, tendo direcionado seus esforços, sobretudo, à resistência e à sobrevivência física.

Entretanto, embora os massacres, as fugas, as perseguições, as violências e as perdas sofridas sejam temas recorrentes nas narrativas de adultos e jovens Avá-Canoeiro, observa-se uma notável demonstração de resistência e resiliência: os mais velhos conseguiram transmitir às gerações mais jovens aspectos fundamentais de sua tradição cultural, como a língua materna, as memórias de tempos passados, as técnicas de caça e de produção artesanal, as práticas de nominação dos descendentes e a mudança de nomes conforme as fases da vida — costume comum entre povos de tradição Tupi-Guarani.

Os Avá-Canoeiro se reconstroem a cada dia e transformam suas identidades de acordo com as condições atuais, incorporando pessoas de outros povos por meio de casamentos, aprendendo novas línguas e culturas com seus cônjuges e familiares, transitando entre aldeias e comunidades, retomando territórios, reivindicando direitos e construindo suas escolas. Acredita-se que, embora com uma população reduzida, a geração jovem, ao dominar a leitura e a escrita, terá condições de, no futuro, aprofundar seus conhecimentos sobre as histórias, tradições e práticas culturais de seu povo e, se assim o desejarem, recuperar, retomar e fortalecer sua cultura tradicional, bem como aspectos desse passado que façam sentido para eles nos dias atuais.

A escrita pode ser uma grande aliada na documentação e no fortalecimento das línguas faladas por eles, assim como dos seus conhecimentos e práticas tradicionais, constituindo-se em importante instrumento de retomada e fortalecimento cultural. Entretanto, serão também necessárias políticas governamentais de educação intercultural fortes e comprometidas com a proteção da vida e da dignidade humana, com a defesa dos territórios e com o fortalecimento linguístico e cultural dos Avá-Canoeiro, conforme prevê a Constituição Federal e a legislação específica sobre educação escolar indígena no Brasil.

 

Aspectos Históricos

Historicamente, o povo Avá-Canoeiro foi poderoso e temido na região do cerrado goiano, antes mesmo da criação do estado de Goiás e da divisão que originou o estado do Tocantins. Como muitos outros povos indígenas do Brasil, encontraram os colonizadores em seus caminhos e sofreram perseguições e massacres que quase os levaram à extinção. Atualmente, apesar de possuírem uma população reduzida, são vistos como símbolo de resistência.

Segundo fontes históricas, foram brutalmente massacrados a partir do século XVIII, com a chegada dos primeiros colonizadores à região. Posteriormente, sofreram ataques das expedições que percorriam o rio Araguaia, desde o Pará até a antiga capital de Goiás, entre os anos de 1791 e 1793 (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, s.d.).

Devido a esses massacres, já não puderam viver em aldeias. Divididos em dois grupos, passaram a perambular em busca de refúgio. Um deles permaneceu na região do rio Maranhão e do rio Tocantins, no antigo norte de Goiás; o outro deslocou-se para a região do rio Araguaia.

Atualmente, são dois pequenos grupos que desenvolveram diferenças dialetais e de modo de vida. Não fazem referências a memórias de um passado comum, embora atualmente se reconheçam como um único povo, sobretudo pelas semelhanças linguísticas e pelo compartilhamento de narrativas e memórias dos sobreviventes, transmitidas às gerações mais jovens.

É importante ressaltar que ambos os grupos, assim como outros povos originários do país, vivenciaram, após o período colonial e formalmente até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a tutela conduzida por instituições e políticas indigenistas autoritárias, antes, durante e depois da ditadura militar no Brasil. No contexto dessas políticas — tanto do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910, quanto da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), instituída em 1967 —, sob o discurso da proteção, eram realizados contatos e deslocamentos forçados que liberavam territórios originários para o desenvolvimento de projetos nacionais ou empreendimentos privados, como hidrelétricas e a agricultura extensiva em diversas regiões do país. Tais ações resultaram quase no extermínio de muitos povos, inclusive dos Avá-Canoeiro.

Quando foram contatados pela FUNAI, os Avá-Canoeiro de Minaçu (GO) eram um grupo de apenas quatro pessoas, sobreviventes do último massacre sofrido: duas mulheres adultas, Matxa e sua irmã Nakwatxa; o esposo de Matxa, Unga Unga; e um menino, Iawi. Eles enfrentaram inúmeras dificuldades para permanecerem vivos, isolando-se e se escondendo, por longo período, em regiões de serra e cavernas.

Os sobreviventes relatam que sua aldeia foi atacada e queimada em uma madrugada, e que todos os demais foram assassinados. Fugiram, deixando para trás os corpos de seus familiares. Uma criança nasceu durante o processo de fuga, e um homem adulto — o pai dessa criança — faleceu na mata em decorrência do ataque de uma onça, restando as duas mulheres e as duas crianças.

Desde então, Matxa, a mulher mais velha, e Nakwatxa, sua irmã, conseguiram resistir e proteger suas vidas e as das duas crianças, até serem atingidas pela construção da represa, que envolvia o uso de máquinas pesadas, ruídos intensos e a presença de centenas de trabalhadores.

Assustados e sem poder sair de seus abrigos para procurar alimentos, pediram ajuda a uma família local e, posteriormente, passaram à tutela da FUNAI e de sua política indigenista, que inicialmente os classificava como “índios isolados” e, atualmente, como “índios de recente contato”. Se até aquele momento haviam fugido, resistido e evitado o contato direto — escondendo-se durante o dia e saindo à noite para caçar e buscar alimento —, a partir da tutela da FUNAI passaram a viver sob o controle direto da instituição, que manteve, desde então e até recentemente, um controle absoluto sobre suas vidas.

O controle sobre a vida dos Avá-Canoeiro de Minaçu foi potencializado pela presença de Furnas Centrais Elétricas, responsável pelo empreendimento hidrelétrico que atingiu seu território de peregrinação e refúgio. A empresa foi obrigada a desenvolver ações compensatórias, como arcar com os custos de demarcação e homologação da terra indígena, indenização de posseiros e execução de projetos nas áreas de infraestrutura, educação e saúde, entre outras.

Assim, sob a proteção da FUNAI, passaram a viver sob forte controle por parte dos agentes dessa instituição e, simultaneamente, por técnicos de Furnas, vivenciando uma dupla tutela. Essa condição impediu, inclusive, que cas crianças nascidas após o contato tivessem acesso a uma vida escolar regular e contínua, como qualquer outra criança brasileira (BORGES; LEITÃO, 2003; 2020).

Até 2014, tiveram apenas algumas experiências pontuais com a educação escolar e com a leitura e a escrita. Somente nesse ano, após a criação do Departamento de Educação Quilombola, Indígena e do Campo na Secretaria de Educação do Estado de Goiás, e após essa secretaria ser acionada pelo Ministério Público, foi criada uma classe de extensão ligada a uma escola da rede pública da cidade de Minaçu. A partir de então, passou-se a oferecer educação infantil, ensino fundamental e médio na modalidade Educação de Jovens e Adultos.


Fontes e Referências - verbete awa-canoeiro